sábado, 11 de maio de 2013

circa 2007

Mezzo piano

Olhava para a partitura como se fosseum papiro criptografado em hieroglifos. Era a única coisa que podia fazer naquele momento. Não tinha nem como vadiar: já havia o feito de todas as maneiras possíveis. Talvez se fizesse o que fazia de uma maneira mais lenta, mais apreciativa, não ficasse tanto tempo sem ter o que fazer. Tudo que lhe restava era estudar. Mas o que mais gostava de estudar era a coisa em que era pior: música. Mínimas, semínimas, colcheias, desespero, frustração. Será que era tão difícil assim separar uma linha da outra? Encarava partituras como encarava sua vida: só sabia que tinha que enfrentá-la, mas não sabia como, ou se ia aguentar esperar o final de toda essa ladainha. Feriu a primeira tecla em tom de lá. Errado. Sentia-se como se sentia ao ver todas aquelas pessoas reclamando de seus namorados: completamente frustrada. Não sabia o que era conseguir ler uma partitura e errar durante uma apresentação assim como não fazia idéia do que era sequer ter alguém para amar. Não sabia nem o que era um fora: era covarde demais para tentar. Talvez fosse só baixa auto estima: talvez fosse apenas a verdade irrefutável. Só sabia que a única coisa que nunca a abandonaria era a música. Essa, que sempre lhe acompanhou, que nunca lhe abandonaria, que sempre sabia o que lhe dizer. Se estava triste, lhe dizia para continuar indo, que a vida tem um sentido, um dia você irá encontrá-lo. Se estava com medo do que estava por vir, dizia-lhe para não ter medo de continuar vivendo, para não ter medo de andar por esse mundo sozinha. Era a única que não a deixaria na mão, nem quando seus amigos a abandonavam por fúteis amores escolares que em poucos anos viriam a se tornar lembranças de um período que ela gostaria de esquecer mais do que nunca. Sabia que nunca esqueceria de seus amigos, mas tinha a certeza, em seu coração, de que lhe abandonariam ao menor sinal de vantagem para eles. Não conseguia saber nem se realmente eram seus amigos; encarava-nos como colegas, meros companheiros das tristezas e sacrificios que a vida escolar e a adolescência lhes traziam. As vezes, achava que estava completamente sozinha. Seus pais não a entendiam, não podia contar com seus amigos, nem mesmo os virtuais. Sua única companheira sempre fora a música. E ainda assim, não consegue dominar suas traquinagens e truques baixos. Ouvir a ela não bastava; tinha de saber comandá-la, de alguma forma. Nunca seria completamente feliz se não soubesse. Seu único companheiro, o que ouvia todas as suas mágoas, felicidades, regozijos e depressões, era seu piano. Simples em estrutura, complexo em funcionalidade. não era apenas um instrumento; era o que a mantinha viva. Não via mais motivos para continuar se não fosse por aquilo. Era o que quebrava sua rotina, o que a fazia feliz. E por isso se sentia tão deprimida em não conseguir proferir nenhuma frase musical sequer: seu único amigo, embora companheiro, era traiçoeiro, indomável. Sentou-se em sua cama, derrotada. O que fazer? Simplesmente não dá. Dormiu até o dia seguinte, quando levantou-se para mais um dia tedioso, rotineiro, parte de sua decadência, no qual viria a, novamente, afogar suas mágoas naquele que não conseguia domar, inclusive a mágoa de não domá-lo em si. 

Surpresa!

Abre a porta receosa. Não sabe o que acontece em sua própria casa. Luzes apagadas, telefone fora do gancho. O que estaria acontecendo? Cautelosamente, avançou pela sala, esperando no segundo seguinte pisar em algo desagradável, de qualquer espécie. Sua coragem era inconcstante como a chama das velas que via a sua frente. Espere. Velas? Ela não se lembrava de ter acendido velas... Num lampejo de consiência (e também da vela a sua frente, em resposta à rajada de vento da janela aberta), lembrou-se do que levava a essa situação: havia prometido a Jorge, seu marido, que chegaria mais cedo do trabalho. Com mais convicção, avança pelo corredor preparando sua mais inocente cara de surpresa. Mas no entanto, seu esforço foi em vão. A surpresa foi nada mais que inevitável. Ao olhar para o chão, vê uma poça de sangue. Respira fundo. Só pode ser um pesadelo. Um daqueles horríveis. Caminhou pelo quarto esperando não ver o que imaginava que veria a sua frente. Bem no dia do seu aniversário. Todo ano, tentavam agradá-la, mas nunca conseguiam. Ela sempre estivera cansada demais para que pudesse se divertir. Hoje seria o mesmo, imaginava ela a caminho de casa, com um sorriso amarelo. Amarelo, pois, mas sincero. Amava seus dois filhos ("Jonas e Lúcio, meus bebês. Não são lindos?") e seu marido com todo seu coração. Mas achava uma amolação esse tipo de festividade. Eu nasci, pronto, ponto final. Não precisa de comemorações que duram horas para celebrar uma união de gametas que resultou em horas de dor excruciante e anos de noites mal dormidas para minha mãe, nem prejuízo de milhares de reais para meu pai. Nesse momento, tudo que conseguia pensar era no que havia perdido. Sentou-se na porta do banheiro, de onde saia uma enorme massa de fluído vermelho. Não se importava mais com nada: se suas roupas para sempre estariam manchadas daquilo que considerava a essência do ser humano, se seus cabelos boiavam em uma poça de parte de sua família. Tudo que conseguia pensar era em como arranjaria coragem para abrir a porta. Observava, de uma perspectiva completamente diferente da de uma pessoa normal, o quarto bagunçado, com metade da mobília portando apenas espectros do que um dia foram aparelhos eletrônicos da mais alta tecnologia. É, assim era Jorge: sempre queria tudo do melhor, para ela e seus filhos. Manchas de sangue espalhavam-se pelas paredes, apontando uma possível batalha pela vida, acabando numa morte dolorosa com a cabeça arrebentada na cabiceira da cama. Não, não pode pensar nisso. Só vai piorar as coisas. Levanta-se; cansou de sua própria covardia. É hora de encarar os fatos de frente. Eles não poderão ser mudados, de maneira alguma. Encara a porta, já de pé, respira fundo, e gira a maçaneta. Abre a porta e vê seus filhos e seu marido. Esses, no entanto, não se encontram inertes, em posições desconfortáveis, sangrando por todos os orifícios imagináveis. Esses se encontram pulando alegremente à sua volta, gritando "Feliz aniversário!" de uma maneira estridente, com mais decibéis do que os permitidos num show de rock. No dia seguinte, pediu o divórcio. 

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